Autista, TDAH e fundador da Clínica TerapeuTEAr
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A dupla excepcionalidade – frequentemente referida em inglês como twice exceptional ou 2e – caracteriza indivíduos que apresentam simultaneamente altas habilidades/superdotação e alguma condição que envolve um déficit ou transtorno do neurodesenvolvimento. Em outras palavras, são pessoas com capacidades cognitivas excepcionalmente elevadas em uma ou mais áreas, combinadas a condições como Transtorno do Espectro Autista (TEA) ou Transtorno do Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH), entre outras. No contexto deste artigo, focaremos principalmente nos perfis em que convergem autismo e superdotação ou TDAH e superdotação, embora o conceito de dupla excepcionalidade também abranja combinações com dislexia, discalculia, dificuldades de aprendizagem e outras condições.
O termo “dupla excepcionalidade” implica que tais indivíduos são excepcionais em dois sentidos: pelo alto potencial intelectual e pelas necessidades especiais decorrentes de sua condição neurodivergente. Historicamente, a literatura sobre superdotação e neurodiversidade concentrou-se sobretudo no público infantil e adolescente. Com isso, muitos adultos duplamente excepcionais permaneceram invisíveis ou incompreendidos, seja por nunca terem sido identificados formalmente como superdotados, seja por terem tido seu autismo ou TDAH subdiagnosticado ao longo da vida. De fato, pesquisas indicam que uma parcela significativa dessas pessoas chega à vida adulta sem diagnóstico: por exemplo, estima-se que até 90% dos superdotados adultos nunca tenham sido identificados na infância, o que os torna suscetíveis a problemas de adaptação e saúde mental na vida adulta. Além disso, mesmo entre aqueles diagnosticados ainda na infância com uma condição (como autismo ou TDAH), não raro o alto potencial cognitivo passa despercebido – e vice-versa.
Essa dificuldade de identificação na infância se deve a vários fatores. Características intelectuais excepcionais podem mascarar sinais de autismo ou TDAH (a criança superdotada aprende a compensar suas dificuldades, escondendo-as dos adultos), ou então os sintomas do transtorno podem ofuscar o talento (a criança com TDAH pode ser vista apenas como “problemática”, sem que suas habilidades se sobressaiam no ambiente escolar). Em alguns casos, ambas as excepcionalidades permanecem ocultas, fazendo com que o indivíduo atravesse a juventude sem reconhecimento nem suporte adequado. Não surpreende, portanto, que muitos só venham a descobrir sua dupla excepcionalidade na vida adulta – frequentemente motivados por eventos como a avaliação de um filho (que leva os pais a se reconhecerem) ou por uma busca pessoal de explicações para suas vivências e dificuldades até então atribuladas.
Este artigo tem como propósito oferecer uma visão abrangente e aprofundada sobre a dupla excepcionalidade em adultos autistas e/ou com TDAH que também possuem altas habilidades ou superdotação. Discutiremos os principais perfis que combinam essas características, suas traços comuns, desafios enfrentados e pontos fortes, bem como questões relacionadas ao diagnóstico (incluindo subdiagnóstico e diagnóstico tardio). Exploraremos os impactos na vida adulta – nos estudos, trabalho, relacionamentos, saúde mental e construção da identidade – e forneceremos orientações práticas para o autoconhecimento, a busca de diagnóstico e estratégias de adaptação no dia a dia, incluindo formas de advocacy (defesa de direitos e necessidades). A linguagem adotada é clara e acessível, porém tecnicamente embasada, de modo a dialogar diretamente com leitores neurodivergentes adultos no Brasil, combinando empatia e informação qualificada.
Ao longo do texto, apresentaremos dados de pesquisas recentes, estudos de caso e diretrizes especializadas, com ênfase em fontes confiáveis (artigos científicos, publicações acadêmicas, diretrizes institucionais e obras de referência). Vale notar que privilegiamos, sempre que possível, referências brasileiras ou que reflitam a realidade brasileira, de forma a contextualizar a dupla excepcionalidade no nosso país. Esperamos, assim, que este artigo funcione como um guia de qualidade monográfica, auxiliando adultos autistas e/ou com TDAH e altas habilidades – inclusive aqueles em processo de investigação ou autodescoberta – a compreender melhor a si mesmos e buscar suporte adequado.
O conceito de dupla excepcionalidade aplica-se quando um indivíduo apresenta altas habilidades/superdotação (AH/SD) concomitantemente a algum tipo de deficiência, transtorno do desenvolvimento ou diferença significativa que também demanda atenção especial. Em termos práticos, isso significa reconhecer que uma mesma pessoa pode ser simultaneamente superdotada e neurodivergente, possuindo talentos excepcionais e dificuldades acentuadas ao mesmo tempo. Essa noção desafia a ideia, ainda comum, de que “se alguém tem um transtorno, não pode ser superdotado” e vice-versa. De fato, a baixa conscientização sobre a dupla excepcionalidade e o mito de exclusão mútua (acreditar que altas habilidades e transtornos não coexistem) contribuem para que muitos casos passem despercebidos.
Segundo a literatura, é possível haver dupla excepcionalidade em diversas combinações: superdotação intelectual e TDAH, superdotação e autismo (incluindo Síndrome de Asperger, que corresponde aos quadros de autismo leve nível 1), superdotação e dislexia, superdotação e transtornos de processamento auditivo ou visual, entre outros. Para fins deste artigo, destacaremos as duas combinações mais pesquisadas e relevantes no contexto de adultos neurodivergentes: Altas Habilidades + Autismo e Altas Habilidades + TDAH. Cabe ressaltar, entretanto, que em alguns casos o indivíduo pode apresentar tríplice excepcionalidade (por exemplo, autismo, TDAH e superdotação ao mesmo tempo), tornando o perfil ainda mais complexo – embora a pesquisa sobre ocorrências múltiplas assim seja escassa e além do escopo principal aqui.
Altas Habilidades/Superdotação (AH/SD) é a denominação usada no Brasil para pessoas com desempenho muito acima da média em uma ou mais áreas do potencial humano – incluindo inteligência geral, habilidades acadêmicas específicas, liderança, artes ou psicomotricidade. Essas pessoas costumam apresentar grande criatividade, envolvimento em aprendizagem e capacidade de resolver problemas de forma inovadora. Estimativas indicam que entre 2% a 5% da população geral podem ser consideradas superdotadas. No Brasil, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB/1996) inclui alunos com altas habilidades no âmbito da educação especial, garantindo-lhes direito a atendimento educacional especializado assim como aos estudantes com deficiências e transtornos globais do desenvolvimento. Ainda assim, a identificação formal da superdotação costuma ocorrer majoritariamente no ambiente escolar e frequentemente depende de avaliações especializadas nem sempre acessíveis a todas as famílias. O resultado é uma subnotificação significativa: por exemplo, embora projeções sugiram haver cerca de 4 milhões de superdotados no Brasil (aprox. 2% da população), apenas cerca de 26 mil alunos estavam identificados na educação básica em 2022. Ou seja, menos de 1% dos alunos foram oficialmente reconhecidos, um número muito aquém do esperado – revelando que muitos superdotados passam pelos estudos sem diagnóstico ou apoio.
Dentro desse universo de altas habilidades, a dupla excepcionalidade ocorre quando coexiste um transtorno ou condição diagnosticável. Autismo e TDAH são exemplos clássicos, mas não os únicos. No caso do Transtorno do Espectro Autista (TEA), trata-se de uma condição neurodesenvolvimental caracterizada por diferenças na comunicação social, padrões de comportamento repetitivo e interesses específicos intensos, frequentemente acompanhada de sensibilidades sensoriais. Já o TDAH se caracteriza por níveis clinicamente significativos de desatenção e/ou hiperatividade-impulsividade, impactando o funcionamento diário desde a infância. Ambos os transtornos são heterogêneos em sua apresentação, variando de leves a mais impactantes, o que significa que podem passar despercebidos em indivíduos de alta inteligência, especialmente se desenvolveram estratégias de coping que mascaram seus sintomas.
Importante frisar que a dupla excepcionalidade não configura um diagnóstico separado – ou seja, não existe um código específico no DSM ou CID para “superdotação + autismo” ou “superdotação + TDAH”. O que ocorre na prática é a sobreposição de dois eixos de avaliação: de um lado, o indivíduo satisfaz critérios diagnósticos de um transtorno; de outro, demonstra capacidades excepcionalmente altas em certo domínio. Essa combinação gera perfis atípicos e irregulares, com contrastes acentuados entre pontos fortes e fracos. Profissionais devem, portanto, ter sensibilidade para enxergar além das aparências unilaterais – isto é, reconhecer sinais de um transtorno em uma pessoa de desempenho brilhante, ou identificar a superdotação em alguém que apresenta uma condição neurodivergente. Infelizmente, nem sempre isso acontece. Como discutiremos adiante, ainda prevalece a tendência de tratar o caso pelo primeiro rótulo obtido (ou apenas pela deficiência, ou apenas pela superdotação), deixando a segunda excepcionalidade negligenciada.
Em suma, dupla excepcionalidade significa duas realidades convivendo: habilidades muito acima da média e desafios significativos de ordem neurodesenvolvimental. É uma situação complexa que desafia modelos tradicionais de identificação e intervenção, exigindo abordagens multidisciplinares e individualizadas. Para entender melhor essas nuances, exploraremos a seguir os principais perfis de dupla excepcionalidade envolvendo autismo e TDAH, delineando características comuns, dificuldades e fortalezas.
Embora cada pessoa duplamente excepcional seja única, a literatura e a prática clínica têm observado certos perfis típicos quando falamos de autismo + superdotação e de TDAH + superdotação. A seguir, descrevemos esses perfis combinados, ressaltando como as características de cada condição podem interagir.
Quando uma pessoa autista é também intelectualmente superdotada, formam-se perfis às vezes chamados de “Asperger superdotado” (lembrando que Asperger corresponde ao autismo leve, conforme terminologia do DSM-IV) ou simplesmente adultos autistas de alto QI. Estudos indicam que há uma proporção significativa de indivíduos no espectro autista que possuem inteligência média ou acima da média – alguns inclusive em nível de superdotação. Guimarães e Alencar (2012), por exemplo, apontam que muitos autistas (especialmente aqueles de nível 1, anteriormente Síndrome de Asperger) apresentam desempenhos intelectuais elevadíssimos, caracterizando casos de dupla excepcionalidade. Não por acaso, personalidades como Temple Grandin (autista com doutorado e inventor), ou mesmo figuras históricas como Albert Einstein e Isaac Newton, têm sido relacionadas a esse perfil – embora no caso dos últimos não haja diagnósticos formais, ilustra a ideia de autismo coexistindo com genialidade. Um estudo conduzido por Agrela et al. (2021) concluiu inclusive que “muitos Aspergers são superdotados, mas nem todos superdotados são Aspergers”, sugerindo uma interseção considerável entre as duas populações apesar de serem condições distintas.
Nos autistas superdotados, algumas características de ambos os espectros se combinam de forma singular. Por exemplo, é comum haver um hiperfoco intenso em áreas de interesse específico – algo típico do autismo – aliado a uma capacidade incomum de aprofundamento naquele tópico – fruto da inteligência elevada. Esses indivíduos podem desenvolver conhecimento enciclopédico em suas paixões (sejam datas históricas, programação, literatura, matemática avançada etc.) e demonstrar habilidades prodigiosas em tarefas relacionadas a essas áreas. Academicamente, tendem a exibir um desempenho excelente em matérias de seu interesse (com escores muito acima da média em testes de leitura, linguagem, lógica ou matemática), conforme observado em estudos com superdotados no espectro autista. Ao mesmo tempo, podem apresentar déficits marcantes em outras áreas: frequentemente há discrepâncias entre habilidades verbais e não-verbais versus habilidades de processamento de informação. Foley-Nicpon et al. (2012) verificaram que jovens autistas superdotados possuíam capacidades verbais e não-verbais muito acima da média, mas memória de trabalho e velocidade de processamento significativamente menores. Ou seja, podem raciocinar brilhantemente em problemas complexos, mas demorar em tarefas simples ou ter dificuldades com multitarefa, organização e tempo – um perfil cognitivo irregular.
Uma marca registrada desse perfil é a assincronia no desenvolvimento: socialmente e emocionalmente, o indivíduo pode apresentar atrasos ou peculiaridades típicas do autismo, enquanto intelectualmente está anos à frente. Essa combinação pode levar a sentimentos de frustração e isolamento. Imagine alguém capaz de discutir física quântica ou filosofia com profundidade, mas que ao mesmo tempo tem dificuldade de participar de uma conversa casual ou entender ironias sociais – este descompasso é a realidade de muitos autistas superdotados. Conforme nota Neihart (2000), comparando crianças superdotadas típicas com aquelas com Síndrome de Asperger, estas últimas frequentemente têm padrões de fala pedantes, linguagem formal e atonal, em contraste com a fala mais espontânea dos superdotados não-autistas. Também tendem a resistir a mudanças de rotina de forma mais rígida, apresentando baixa tolerância a alterações, diferentemente de superdotados neurotípicos que podem se adaptar melhor. No convívio social, autistas superdotados muitas vezes têm consciência limitada de suas diferenças – podem não compreender por que não se encaixam, enquanto superdotados não-autistas geralmente percebem que são diferentes e conseguem ajustar-se um pouco melhor. Há, portanto, características peculiares: humor, interação e coordenação motora podem se mostrar inapropriados ou desajeitados no caso da dupla excepcionalidade, mesmo frente a um intelecto notável.
Uma consequência dessas nuances é a confusão diagnóstica. Educadores e profissionais podem hesitar entre rotular o aluno como autista ou superdotado, já que várias características se sobrepõem. Por exemplo, tanto crianças autistas quanto crianças superdotadas podem exibir foco intenso em assuntos específicos, dificuldade em fazer amigos da mesma idade e problemas de adaptação no ambiente escolar. São comportamentos que “fogem do desenvolvimento típico” de formas diferentes, mas que no cotidiano podem parecer semelhantes. Assim, há casos em que uma criança autista superdotada é inicialmente identificada apenas como superdotada (ignorando-se os sinais de TEA), ou o contrário – identificada como autista sem reconhecimento das altas habilidades. Foley-Nicpon et al. (2011) ressaltam que muitas crianças acabam mal diagnosticadas: rotuladas só com superdotação ou só com Asperger, quando deveriam receber ambos os diagnósticos, ou às vezes sendo consideradas 2e erroneamente pela dificuldade em distinguir o que é traço do autismo e o que é traço do perfil superdotado.
Em adultos, o perfil autista superdotado pode se manifestar de formas variadas. Alguns conseguem brilhar em carreiras altamente especializadas que se alinham a seus interesses (por exemplo, pesquisa científica, tecnologia, artes), aproveitando a capacidade de hiperfoco e pensamento sistêmico do autismo junto com a criatividade e raciocínio elevado da superdotação. Outros, porém, enfrentam dificuldades em contextos profissionais mais convencionais, especialmente devido a desafios sociais e organizacionais. Relatos clínicos apontam que adultos nessa condição podem ter históricos acadêmicos irregulares: alguns acumulam títulos universitários e pós-graduações em áreas de interesse (como no estudo de caso brasileiro de um adulto 2e de 51 anos que possuía duas graduações e três pós-graduações), enquanto outros podem ter abandonado trajetórias promissoras por não conseguirem lidar com aspectos executivos (cumprimento de prazos, trabalho em equipe, burocracia) ou por desmotivação quando não estimulados em seu potencial. Em situações sociais e afetivas, é comum a queixa de “sentir-se de outro planeta” – muitos adultos autistas superdotados relatam desde cedo uma sensação de desconexão em relação aos pares, por terem interesses incomuns e maneiras atípicas de se expressar. Podem ter dificuldades em relacionamentos íntimos devido a peculiaridades de comunicação e necessidades de rotina, a despeito de possuírem grande empatia em nível profundo ou senso de justiça aguçado (traços tanto de autismo quanto da sensibilidade elevada comumente associada a superdotação).
Em suma, o perfil TEA + superdotação configura uma personalidade de contrastes acentuados: intelecto potente, criatividade e conhecimento amplo convivendo com dificuldades sociais, sensoriais e adaptativas. Esses indivíduos podem trazer contribuições únicas nas áreas em que se especializam, pela forma original e intensa com que pensam, mas necessitam de compreensão e suporte para manejar suas vulnerabilidades. Identificar corretamente a dupla excepcionalidade é crucial para que recebam intervenções adequadas – tanto estímulo ao talento quanto apoio para suas necessidades autísticas. Programas educacionais que equilibrem atividades desafiadoras e adaptações para as dificuldades mostraram-se os mais eficazes para desenvolver o potencial dessas pessoas. Sem esse olhar duplo, corremos o risco de desperdiçar talentos excepcionais ou agravar o sofrimento dessas pessoas (voltaremos a isso ao falar de desafios e saúde mental).
No caso da combinação de Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH) com altas habilidades, o perfil também apresenta características peculiares. Crianças e adultos com TDAH + superdotação costumam ser descritos como extremamente criativos, curiosos e cheios de ideias, porém enfrentando dificuldades para se organizar, manter atenção em tarefas rotineiras ou cumprir prazos. É como se houvesse uma mente brilhante "dirigindo um carro com freios defeituosos" – a pessoa enxerga soluções inovadoras e pensa “fora da caixa”, mas tem tropeços na execução devido aos sintomas do TDAH. Marcy Caldwell, psicóloga que trabalha com adultos 2e, ilustra que é como ter “um maestro genial regendo um sinfônico de fogos de artifício enquanto ao mesmo tempo persegue uma borboleta travessa”, sugerindo a mistura de intelecto elevado, criatividade exuberante e uma pitada de caos que caracteriza esses indivíduos.
Pesquisas populacionais sugerem que o TDAH e a superdotação coocorrem mais do que se imaginava. Um grande estudo italiano de 2023, por exemplo, avaliando quase 1.000 crianças com diagnóstico de TDAH, encontrou cerca de **8,6% de casos de dupla excepcionalidade (TDAH + superdotação)**. Isso indica que a prevalência de altas habilidades entre crianças com TDAH foi maior do que na população em geral, contrariando a crença de que seriam grupos mutuamente exclusivos. Inversamente, entre crianças superdotadas com baixo desempenho escolar, mais de 50% apresentavam indicadores de TDAH em triagens feitas com professores, e quase 1 em cada 3 tinham sinais de TDAH segundo os pais, em um estudo holandês de 2021. Tais números reforçam que muitos indivíduos podem pertencer a ambos os grupos simultaneamente, mesmo que nem sempre sejam identificados como tais.
No dia a dia, o adulto TDAH superdotado frequentemente lida com uma dinâmica interna muito intensa. Do lado das fortalezas, destacam-se a capacidade de raciocínio rápido, o pensamento hiperassociativo e a solução criativa de problemas. Esses adultos costumam "pensar em mil direções ao mesmo tempo", fazendo conexões incomuns entre ideias e gerando projetos originais. Quando algo desperta seu interesse genuíno, eles conseguem entrar em hiperfoco – um estado de concentração profunda e produtiva – dedicando horas a fio a uma atividade e produzindo resultados impressionantes. Essa habilidade de hiperfoco no 2e muitas vezes é ainda mais acentuada do que em indivíduos com TDAH sem superdotação, permitindo conquistas significativas em áreas de paixão (por exemplo, aprender uma linguagem de programação em tempo recorde, dominar um instrumento musical de forma autodidata, resolver um problema complexo no trabalho de forma inovadora etc.).
No entanto, as fraquezas ou desafios são igualmente acentuados. As características nucleares do TDAH – desatenção, impulsividade, dificuldade de planejamento, desorganização temporal – podem impedir que toda essa capacidade seja traduzida em realizações consistentes. É comum ouvir desses indivíduos frases como: “Você tem tanto potencial, mas...”. Muitos passaram a infância e adolescência ouvindo que eram brilhantes porém preguiçosos, inteligentes mas indisciplinados. Isso porque, apesar de compreenderem facilmente conceitos complexos, tinham cadernos caóticos, esqueciam tarefas, procrastinavam projetos importantes ou perdiam o interesse rápido em atividades monótonas. Na vida adulta, a cena se repete: ideias brilhantes de negócios que nunca saem do papel, talento para criar soluções no trabalho mas dificuldade em cumprir horários e entregar relatórios, capacidade de conversar sobre inúmeros assuntos mas propensão a distrações que atrapalham a continuidade dos objetivos. Em resumo, o TDAH impõe barreiras executivas à expressão plena da superdotação, tornando a vida dessas pessoas um paradoxo entre o “saber/pensar” e o “fazer”. Um artigo descreve de forma enfática: *“Ser 2e com TDAH é ter um caminhão de ideias brilhantes que nunca chegam ao destino”*.
Alguns traços distintivos do perfil TDAH + AH que aparecem na literatura incluem:
Assim como no autismo, há problemas de identificação. Sintomas de TDAH podem ser confundidos com traços da própria superdotação e vice-versa. Por exemplo, uma criança superdotada desatenta e entediada na aula pode ser vista como tendo TDAH, quando na verdade está subestimulada. Ou uma criança com TDAH que hiperfoca em um assunto de interesse e demonstra conhecimento avançado pode ser vista apenas como superdotada, mascarando suas dificuldades reais. De fato, “os sintomas das duas condições muitas vezes se confundem, tornando o diagnóstico diferencial muito difícil”. Há casos de diagnósticos equivocados em ambos os sentidos: superdotados recebendo diagnóstico de TDAH sem ter (apenas por comportamentos incompatíveis com aulas pouco desafiadoras), e indivíduos com TDAH tendo sua alta habilidade ignorada por focarmos só no déficit. Somente uma avaliação neuropsicológica abrangente consegue destrinchar essas nuances, avaliando separadamente o quociente intelectual, funções executivas, atenção, memória e outras habilidades. Recomenda-se, por exemplo, que sempre que se suspeite de dupla excepcionalidade, o indivíduo seja submetido tanto a testes de inteligência quanto a escalas formais de sintomas (como testes de atenção, funções executivas, etc.), para mapear onde estão os pontos fortes e fracos.
No adulto TDAH superdotado, os impactos variam. Alguns conseguem canalizar sua energia e inteligência para carreiras criativas ou empreendedoras, onde a multitarefa e o pensamento inovador são valorizados – muitos se tornam inventores, empresários ou profissionais autônomos de sucesso, precisamente porque “pensam diferente” e não suportariam trabalhos convencionais repetitivos. Outros, entretanto, vivenciam ciclos de frustração e baixo desempenho crônico: têm qualificações acadêmicas elevadas mas não conseguem se manter em empregos, ou vivem procrastinando metas pessoais (escrever um livro, terminar um mestrado, iniciar um negócio) por autossabotagem executiva. A autocrítica costuma ser feroz; perfeccionismo combinado com impulsividade pode gerar ansiedade e depressão pela sensação de “falhar em atingir meu potencial”. De fato, estudos mostram que diagnósticos incorretos ou tardios nesse grupo estão associados a baixa autoestima, isolamento social, sintomas depressivos e ansiosos e desempenho aquém do esperado, afetando a saúde mental dos indivíduos. Vamos aprofundar esses aspectos mais adiante.
Em síntese, o perfil TDAH + superdotação traz grande potencial criativo e intelectual, porém sob risco de desperdício de talento se não houver estratégias de manejo adequadas. A chave está em reconhecer simultaneamente as necessidades especiais (terapeutas e coaches podem ajudar com organização, manejo de tempo, técnicas para manter o foco) e as capacidades excepcionais (desafiando-o intelectualmente, permitindo autonomia criativa, flexibilizando ambientes rígidos). Com o apoio correto, muitos 2e com TDAH conseguem transformar aquele “caos organizado” cerebral em inovações concretas e trajetórias de sucesso peculiares – trilhando caminhos não convencionais, mas brilhantes à sua maneira.
Apesar das diferenças entre os perfis de autismo + AH e TDAH + AH, há características gerais que muitos adultos duplamente excepcionais compartilham. Nesta seção, sintetizamos alguns traços recorrentes, bem como os desafios típicos enfrentados e os pontos fortes a serem valorizados.
Vale frisar que muitos desses desafios não decorrem da dupla excepcionalidade em si, mas da falta de compreensão e apoio do ambiente. Quando adequadamente atendidas suas necessidades, pessoas 2e podem prosperar. Contudo, até recentemente, a maioria teve que “se virar” sozinha, enfrentando rótulos simplistas. A identificação correta e intervenções apropriadas têm potencial de prevenir ou mitigar grande parte dessas dificuldades.
Ser duplamente excepcional não é só desafio – há também grandes pontos fortes a serem celebrados e estimulados:
Em síntese, os pontos fortes dos duplamente excepcionais são a outra face de seus desafios. A mesma mente que se distrai em trivialidades, exibe genialidade em criar; a mesma pessoa que tem dificuldade em socializar, demonstra profunda compaixão e lealdade nos relacionamentos que estabelece; quem se angustiava por não caber nos moldes, acaba por inovar precisamente por pensar diferente. Aproveitar esses pontos fortes ao máximo requer autoconhecimento e ambientes favoráveis, como discutiremos nas seções de orientação a seguir.
A avaliação diagnóstica de pessoas com dupla excepcionalidade é reconhecidamente complexa. Conforme vimos, sinais de superdotação podem mascarar sintomas de transtornos e vice-versa, o que demanda dos profissionais um olhar treinado e multidisciplinar. Nesta seção, abordamos como geralmente ocorre (ou deveria ocorrer) o processo diagnóstico, quais são as dificuldades envolvidas e por que tantos casos passam despercebidos ou são identificados erroneamente.
Identificar dupla excepcionalidade implica, basicamente, identificar duas coisas simultaneamente: (1) as altas habilidades/superdotação e (2) o transtorno ou condição associada (p.ex., TEA ou TDAH). Cada um desses elementos, isoladamente, já apresenta desafios diagnósticos; juntos, constituem um verdadeiro desafio.
Um primeiro problema é que, na prática, predomina a identificação de apenas uma das excepcionalidades. Estudos apontam três cenários comuns de subdiagnóstico: (1) o indivíduo é reconhecido como superdotado, mas sua deficiência/transtorno passa despercebido; (2) ele é diagnosticado com um transtorno, mas seu alto potencial não é notado; ou (3) nenhum dos dois é identificado, e o indivíduo segue sem qualquer reconhecimento especial. Vários autores relatam que, usualmente, só a deficiência acaba identificada – ou seja, a pessoa 2e é mais propensa a obter (mais cedo) um diagnóstico de autismo ou TDAH, pois essas condições chamam atenção por causarem dificuldades, enquanto a superdotação requer um olhar mais proativo para ser descoberta. Além disso, o sistema educacional e de saúde frequentemente atua reativamente: se a criança vai mal ou tem comportamentos-problema, investiga-se TDAH/autismo; se ela vai bem demais, investiga-se superdotação – mas quando o quadro é misto (vai mal e bem em áreas diferentes), fica-se num limbo.
Outro entrave é a ausência de um perfil único ou padrão claro de dupla excepcionalidade. Cada combinação (TDAH+AH, TEA+AH, etc.) pode se manifestar de modos diversos, e não há critérios formais em manuais diagnósticos para a dupla excepcionalidade em si. Isso significa que o avaliador precisa aplicar protocolos distintos: testes de inteligência, avaliação neuropsicológica, escalas comportamentais, entrevistas clínicas – e depois integrar os dados para formar um julgamento. Nem todos os profissionais têm formação ou experiência para tal integração. Psicólogos educacionais, neuropsicólogos e pediatras especializados em desenvolvimento tendem a ser os mais indicados para avaliar 2e, pois sabem que “sempre que houver suspeita, deve-se realizar uma avaliação ampla cobrindo o nível de inteligência, o grau do transtorno e áreas afetadas”, conforme recomendam Gilman et al. (2013).
Adicionalmente, as ferramentas de avaliação nem sempre são apropriadas. Testes de QI tradicionais, por exemplo, podem não captar plenamente o potencial de alguém que tenha déficit de atenção – um superdotado com TDAH pode obter pontuação apenas mediana se estiver desatento ou ansioso durante o teste. Ao mesmo tempo, escalas de comportamento baseadas em observações podem não detectar problemas em um autista superdotado que aprendeu a mascarar seus sintomas em ambientes estruturados. Portanto, muitas vezes é preciso flexibilidade e múltiplas fontes de informação: aplicar testes não tradicionais (por exemplo, avaliar criatividade, raciocínio fluido em vez de só memória e velocidade), colher relatos detalhados da história de vida, observar o indivíduo em diferentes contextos e assim por diante. No estudo de caso brasileiro já citado (Silva et al., 2021), por exemplo, a equipe conduziu sete sessões de avaliação neuropsicológica com o adulto suspeito de dupla excepcionalidade, usando uma bateria de instrumentos que incluía WAIS-III (teste de inteligência), escala de funções executivas de Barkley, testes de memória verbal (RAVLT), atenção (BPA), leitura e escrita, e escalas específicas de TDAH para adultos – só assim conseguiram mapear um perfil completo que confirmou o alto QI e os déficits executivos/atencionais compatíveis com TDAH. Esse caso ilustra o nível de detalhamento necessário.
Além disso, preconceitos e falta de informação por parte de familiares, educadores e até profissionais dificultam a identificação. Pais e professores podem não perceber que uma criança que tira notas medianas mas “vive no mundo da lua” é potencialmente superdotada com TDAH – podem simplesmente achar que ela é desinteressada. Ou, no caso inverso, podem recusar a ideia de que uma criança tão inteligente “tenha um transtorno”, atribuindo suas esquisitices apenas à superdotação. Gentry & Fugate (2008) observaram que a crença de que “déficits e superdotação não coexistem” ainda é bastante disseminada, atrapalhando o reconhecimento desses alunos atípicos. Da mesma forma, características contraditórias (como desempenho irregular, comportamentos peculiares) geram perfis “atípicos e complexos” que fogem das categorias tradicionais, levando muitos profissionais a hesitarem em fechar um diagnóstico duplo. Em alguns contextos, há até resistência institucional: escolas podem relutar em identificar superdotação em um aluno autista, temendo não saber lidar; ou serviços de saúde mental podem priorizar tratar os sintomas e ignorar a questão do alto potencial.
O resultado dessas dificuldades é um elevado subdiagnóstico da dupla excepcionalidade. Conforme mencionado, a vasta maioria dos adultos 2e nunca foi identificada na infância. Isso gera implicações profundas:
Em resumo, o contexto diagnóstico da dupla excepcionalidade é marcado por obstáculos de reconhecimento e subdiagnóstico generalizado, com consequências no desenvolvimento pessoal e profissional do indivíduo e na sociedade. Nos últimos anos, porém, cresce a conscientização. Artigos científicos e manuais para educadores começam a tratar do tema; associações de superdotados e de autismo/TDAH ampliam o diálogo sobre casos 2e. Especialistas recomendam avaliar ambos os lados sempre que uma criança (ou adulto) apresentar pistas de potencial elevado e alguma dificuldade significativa – a recomendação é “pensar duplamente”. Ou seja, diante de um autista que parece muito verbal, considerar uma avaliação de habilidades; diante de um superdotado com comportamentos atípicos ou rendimento irregular, considerar avaliação neuropsiquiátrica. Somente assim conseguiremos reduzir o subdiagnóstico e fornecer a essas pessoas o reconhecimento integral que merecem.
Viver como um adulto com dupla excepcionalidade afeta diversas esferas da vida: desde a trajetória educacional e profissional até os relacionamentos interpessoais, a saúde mental e a formação da identidade. Já tangenciamos vários desses aspectos; agora, analisaremos cada um com mais detalhe, para compreender os desafios e oportunidades que surgem na vida adulta de autistas e/ou pessoas com TDAH superdotadas.
Educação superior e aprendizado contínuo: Muitos adultos duplamente excepcionais têm uma relação ambivalente com o ambiente acadêmico. Por um lado, sua sede de conhecimento os leva frequentemente a buscar educação superior e além – não é raro encontrarmos indivíduos 2e com múltiplos diplomas, pós-graduações ou cursos variados (às vezes em áreas díspares, refletindo seus diversos interesses). Eles podem brilhar em setores acadêmicos que combinem com seu hiperfoco e habilidade analítica. Por outro lado, as dificuldades executivas e sociais podem interferir: muitos relatam que durante a faculdade enfrentaram problemas com prazos, organização de estudos, ou networking acadêmico, o que retardou ou inviabilizou certas conquistas (como terminar um curso no tempo padrão, ou aproveitar oportunidades de estágio). Em casos de identificação tardia, alguns só retornam aos estudos depois de adultos, quando descobrem o porquê de terem falhado jovem e então procuram adaptações.
Um dilema comum é a escolha da área de estudo/profissão. Pessoas 2e tendem a ter interesses intensos e específicos, mas também talento para várias coisas, o que pode torná-las indecisas. Além disso, conselhos convencionais de carreira podem não se aplicar bem – às vezes são desencorajadas a seguir uma área “porque envolve muita burocracia” (mas que era a paixão delas), ou empurradas a outras “porque você tem QI para isso” mesmo não gostando. O resultado: trajetórias acadêmicas não-lineares, com trocas de curso ou formações duplas. Por exemplo, um autista superdotado pode inicialmente cursar engenharia (por pressão familiar), largar no meio, depois estudar música onde se encontra melhor. Essas idas e vindas podem ser vistas como fracasso por eles ou por terceiros, mas na verdade fazem parte do processo de se encontrar num mundo feito para trajetórias mais padronizadas.
Mercado de trabalho: No âmbito profissional, adultos 2e podem tanto alcançar sucesso notável em nichos quanto enfrentar desemprego ou subemprego persistente – dependendo do quão bem seus pontos fortes se alinham ao cargo e o quanto seus pontos fracos são acomodados. Indivíduos que conseguem “encaixar” suas paixões e habilidades em uma carreira relatam alta satisfação e desempenho. Há casos de empreendedores brilhantes que fundaram startups inovadoras (usando criatividade e tolerância ao risco, traços comuns a TDAH, por exemplo) ou pesquisadores de ponta (autistas superdotados que se tornam referência em um assunto hiperespecializado). Nessas situações, o trabalho se torna uma extensão natural de seus interesses, e suas dificuldades podem ser mitigadas pela autonomia e pelo ambiente adaptado (muitos trabalham melhor sozinhos ou em horários flexíveis, fugindo do 8-17 de escritório).
Entretanto, quando a vaga não se ajusta bem, problemas surgem: burocracia excessiva, ausência de estímulo intelectual ou ambientes sensoriais/socialmente desfavoráveis são veneno para o trabalhador 2e. Por exemplo, um TDAH superdotado num cargo administrativo repetitivo provavelmente irá procrastinar, cometer erros por distração e ficar altamente frustrado – possivelmente sendo demitido ou pedindo demissão logo. Um autista superdotado numa função de atendimento ao público pode entrar em colapso pelo estresse social e sensorial, mesmo que cognitivamente capaz do trabalho. A falta de compreensão por parte de chefias e colegas piora as coisas: sem saber do duplo perfil, podem julgar o funcionário como "não comprometido", "desorganizado" ou "antissocial". Assim, muitos 2e relatam históricos de empregos curtos ou seguidos de pedidos de afastamento. Alguns acabam optando por trabalhar de forma independente (freelancers, consultores, artistas autônomos), onde podem personalizar o ambiente de trabalho às suas necessidades – isso pode ser muito positivo, embora a instabilidade financeira às vezes seja um trade-off.
Sobrecapacitação vs. subemprego: Curiosamente, pessoas 2e podem experimentar tanto a sensação de overqualification (ser qualificadas demais para seu trabalho) quanto a de underachievement (não atingir um nível de carreira condizente com suas capacidades). Às vezes ambas ao mesmo tempo. Exemplo: um adulto com inteligência excepcional mas TDAH severo talvez só consiga manter empregos básicos; ele sabe que poderia teoricamente fazer muito mais, mas não consegue romper as barreiras executivas – vive num constante sentimento de subaproveitamento. Por outro lado, há quem se posicione em cargos altos e depois enfrente dificuldades pelas demandas organizacionais (ex.: um cientista genial vira coordenador de laboratório – mas gerir pessoas e burocracias foge de suas competências, resultando em estresse enorme). Esse desencontro pode levar alguns a abandonar carreiras promissoras por burnout, ou a evitar promoções, preferindo ficar em posições técnicas onde se sentem seguros.
É importante ressaltar iniciativas recentes de neurodiversidade no trabalho, que algumas empresas de tecnologia e ciência têm adotado, valorizando autistas e TDAHs por suas habilidades únicas e oferecendo adaptações (flexibilidade de horário, ambientes silenciosos, mediadores sociais). Tais programas – ainda incipientes no Brasil – podem ser especialmente benéficos a profissionais 2e, contanto que também reconheçam a parte da superdotação (ou seja, dando tarefas desafiadoras, não apenas sub-funções repetitivas). A combinação ideal de respeito às limitações e aproveitamento dos talentos pode transformar vidas e carreiras dessas pessoas.
Amizades e vida social: Muitos adultos duplamente excepcionais descrevem a infância como um período de sentir-se “fora da turma”. Na vida adulta, esse sentimento pode persistir, mas geralmente aprendem a encontrar nichos sociais onde se sintam mais aceitos. Alguns se aproximam de comunidades nerd/geek, grupos de interesse intelectual (clubes de leitura, grupos de discussão) ou comunidades de neurodivergentes, onde comportamentos excêntricos ou conversas profundas são mais normais. Encontrar pares – seja em intelecto, seja em neurodivergência – costuma ser transformador: “finalmente encontrei pessoas como eu”. Por isso, quando adultos autistas ou com TDAH superdotados se reúnem (p. ex., fóruns online, eventos de altas habilidades), há um senso de alívio e pertencimento.
Entretanto, dificuldades sociais podem continuar atrapalhando. Autistas 2e, por exemplo, podem não perceber nuances sociais, o que resulta em mal-entendidos com amigos ou isolamento (eles podem acabar evitando eventos sociais por exaustão). Já TDAHs 2e às vezes falam demais, interrompem, mudam de assunto de repente – alguns amigos entendem como excentricidade, outros se afastam julgando-os egoístas ou chatos. A intensidade emocional e intelectual também filtra as amizades: pessoas 2e podem não ter muita paciência para conversas superficiais, preferindo interações significativas – isso pode dar a impressão de arrogância ou desinteresse por parte deles. Além disso, se carregam traumas de bullying ou rejeição do passado, podem demorar a confiar e se abrir, aparentando frieza.
Um aspecto positivo é que, quando conseguem amizades, costumam ser amizades muito leais e profundas. Muitos superdotados autistas relatam que só se “ativam” socialmente na presença de pessoas com quem têm conexão intelectual; fora isso, parecem quietos ou alheados. Então, formar essa rede de suporte – mesmo que pequena – é vital para seu bem-estar. Famílias e cônjuges também fazem parte desse círculo: veremos adiante na identidade que ter a validação de entes próximos ajuda a contrabalançar as dificuldades externas.
Relações amorosas: No campo amoroso, experiências variam muito. Alguns adultos 2e encontram parceiros compreensivos e têm relacionamentos estáveis; outros experimentam uma sequência de desencontros. Desafios típicos incluem:
Em suma, na vida social e afetiva, a dupla excepcionalidade requer adaptações de ambos os lados. Quando amigos e parceiros aprendem sobre a condição, e o indivíduo 2e também aprende habilidades sociais necessárias (mesmo que cognitivamente treinadas), as relações podem florescer de forma autêntica e recompensadora. Muitos relatam que, com a maturidade, conseguiram encontrar “minha tribo” – pessoas com quem podem ser eles mesmos – e isso fez toda diferença para o bem-estar.
Já abordamos em partes anteriores que adultos 2e têm vulnerabilidades quanto à saúde mental. Aqui, compilamos os principais pontos:
Felizmente, uma vez diagnosticados e compreendidos, há muitas abordagens para promover o bem-estar dessas pessoas. Terapia cognitivo-comportamental adaptada para autistas ou TDAHs com altas habilidades pode ajudá-los a reformular crenças negativas e desenvolver habilidades sociais/executivas de forma personalizada. Medicamentos podem ser úteis (estimulantes para TDAH, antidepressivos, ansiolíticos) desde que o profissional entenda o contexto 2e – pois, por exemplo, superdotados são às vezes mais sensíveis a efeitos colaterais, ou autistas podem ter respostas diferentes a certos fármacos. Participar de grupos de apoio de adultos neurodivergentes ou superdotados pode reduzir o isolamento e normalizar suas experiências. Estratégias de gerenciamento de estresse (exercícios físicos, meditação, hobbies criativos) também são eficazes, contanto que levem em conta a necessidade de estímulo mental deles (atividades monótonas não prenderão sua adesão).
Em última análise, a saúde mental dos adultos 2e melhora drasticamente quando eles conseguem aceitar e integrar suas duas excepcionalidades na identidade, ao invés de se verem como “defeituosos” ou “partes desconexas”. O próximo tópico aborda justamente essa construção identitária e de autoconhecimento, crucial para o bem-estar.
Formar uma identidade positiva sendo autista/TDAH e superdotado pode ser um percurso desafiador, mas libertador. Durante muito tempo, muitos se viram apenas pelos aspectos negativos (“esquisito”, “problemático”) ou tentaram se encaixar no molde neurotípico/societal. A descoberta da dupla excepcionalidade, seja na adolescência ou na vida adulta, é um ponto de virada que permite ressignificar a própria história.
Muitos relatam que ao conhecer o conceito de 2e e obter um diagnóstico formal, fizeram uma “revisão de vida”: eventos do passado ganharam novas explicações – “ah, então eu não era preguiçoso quando larguei aquele curso, eu estava sobrecarregado pela minha dificuldade de atenção”; “agora entendo porque as festas da empresa me deixavam doente de ansiedade – meu autismo não lida bem com aquele ambiente, e não porque sou antissocial gratuito”. Essa reinterpretação geralmente traz alívio e compaixão por si próprio. Eles passam a se perdoar por falhas e enxergar as realizações sob outra luz (por exemplo, valorizar o fato de ter terminado a faculdade apesar dos obstáculos internos que ninguém viu).
A construção identitária envolve integrar duas facetas que à primeira vista parecem opostas: ser neurodivergente e ser superdotado. Algumas pessoas inicialmente valorizam mais um lado do que o outro. Há quem se identifique fortemente com a comunidade autista/ADHD e veja a superdotação como secundária, apenas uma habilidade a mais. Outros preferem se identificar como superdotados e tratar o transtorno como nota de rodapé, talvez por considerarem socialmente mais aceitável. Com o tempo, tende-se ao equilíbrio: entender que ambas as características interagem e fazem parte de quem a pessoa é, sem hierarquia. Por exemplo, pode-se assumir: “Sou autista e superdotado, minhas habilidades especiais vêm muito do meu jeito autista de pensar, e minhas dificuldades também; tudo isso compõe meu estilo único”.
Um elemento chave é o orgulho e a autoaceitação. Movimentos de neurodiversidade incentivam as pessoas a terem orgulho de serem quem são – não orgulho no sentido de arrogância, mas de se valorizar e recusar a vergonha. No caso dos duplamente excepcionais, isso significa valorizar seu jeito singular de existir. Por exemplo, reconhecer: “Eu talvez nunca seja super organizado ou sociável, mas sou brilhante em criar e tenho um coração enorme para causas que importam para mim, e está tudo bem ser assim”. A partir dessa autoaceitação, eles podem se tornar até advogados de si mesmos e de outros – muitos adultos 2e engajam-se em advocacy, palestras, blogs, orientando jovens que passam por dilemas similares. Há um desejo de “que ninguém mais sofra como eu sofri sem saber quem eu era”.
Também vale mencionar a identidade dentro da comunidade. Alguns adotam rótulos identitários como “neurodivergente” com orgulho, ou participam ativamente de grupos de superdotados adultos (que estão se formando mais recentemente no Brasil, ainda tímidos). Essa participação reforça a identidade social: não sou apenas um indivíduo estranho, faço parte de uma comunidade de pessoas semelhantes. Trocar experiências nesse sentido confirma que suas vivências não são isoladas – há padrões comuns, e isso legitima suas lutas.
Claro, o processo identitário nem sempre é linear. Podem haver recaídas de autoimagem negativa, especialmente se encontram ambientes ainda não inclusivos. Pode-se sentir “muito autista no meio dos superdotados, e muito superdotado no meio dos autistas”, como já dito por alguns, numa sensação de não pertencer totalmente a nenhum grupo. Mas à medida que se conectam com outros 2e, percebem que ali pertencem – justamente no cruzamento das identidades.
Em síntese, a identidade de um adulto duplamente excepcional se fortalece ao integrar suas dualidades, reconhecer seu valor intrínseco e encontrar pertença em comunidades. Esse autoconhecimento lança bases sólidas para que possam então elaborar estratégias de viver melhor, a nosso próximo tema.
Tendo explorado as facetas teóricas e vivenciais da dupla excepcionalidade, é fundamental oferecer orientações práticas para que adultos 2e possam prosperar. Aqui reunimos sugestões e estratégias, embasadas em pesquisas e recomendações de especialistas, que englobam desde o processo de busca de diagnóstico até formas de adaptação no cotidiano e advocacy (defesa de direitos e sensibilização da sociedade).
Por fim, é importante abordar o papel do próprio indivíduo 2e e da comunidade na advocacy – isto é, na promoção de compreensão e garantia de direitos, tanto em esfera pessoal quanto coletiva.
Adultos autistas e/ou com TDAH de altas habilidades representam uma parcela singular e ainda pouco compreendida dentro da neurodiversidade. Ao longo deste artigo, exploramos a dupla excepcionalidade em profundidade – definindo o conceito, descrevendo perfis de combinação de autismo com superdotação e TDAH com superdotação, delineando características, desafios e forças comuns, e abordando as implicações diagnósticas, psicossociais e identitárias na vida adulta. Vimos que longe de ser uma raridade exótica, a dupla excepcionalidade provavelmente toca milhares de pessoas no Brasil, embora a maioria tenha passado despercebida em sistemas educacionais e de saúde que tendem a enxergar apenas uma “etiqueta” por vez.
Os desafios enfrentados por esses indivíduos são significativos: subdiagnóstico crônico, incompreensão social, dificuldades acadêmicas e laborais, problemas de saúde mental decorrentes de anos de inadequação. Porém, também identificamos um enorme potencial e pontos fortes notáveis – criatividade, inteligência acentuada, hiperfoco produtivo, pensamento original, sensibilidade –, que quando bem canalizados podem resultar em realizações extraordinárias e contribuições valiosas à sociedade. A chave para transformar o cenário está em reconhecimento e suporte adequados: diagnóstico correto (ainda que tardio), acomodações no ambiente educacional e profissional, e apoio psicossocial para que esses adultos se entendam e se desenvolvam plenamente.
Para o leitor que se identificou com essas linhas – seja por si próprio, seja por alguém próximo – esperamos ter proporcionado conhecimento e também acolhimento. Saber que existem outros como você, que sua vivência tem nome e explicação, e que há estratégias e recursos para uma vida melhor, pode ser reconfortante e estimulante. Você não está só nessa jornada. Cada vez mais, outros adultos duplamente excepcionais estão se encontrando e se fortalecendo mutuamente, formando comunidades de indivíduos que se aceitam em sua completude.
No âmbito coletivo, há um longo caminho a percorrer. Precisamos de mais pesquisas sobre adultos 2e (a literatura ainda é escassa, especialmente no contexto brasileiro), mais formação para profissionais detectarem e intervirem, e políticas públicas que incluam explicitamente essa população “invisível”. Entretanto, com iniciativas e advocacy crescentes, há motivos para otimismo. A própria noção de neurodiversidade vem ganhando espaço, desafiando visões estreitas sobre inteligência e deficiência. Dentro desse paradigma, a dupla excepcionalidade deixa de ser uma contradição e passa a ser vista como parte natural da variabilidade humana – pessoas que simultaneamente têm altas capacidades e diferenças funcionais, e que por isso merecem um olhar atento e respeitoso em todas as fases da vida.
Concluindo, adultos autistas e/ou com TDAH que possuem altas habilidades enfrentam desafios únicos, mas também possuem um potencial único. Com compreensão, autoconhecimento e suporte certo, eles podem transformar suas aparentes dualidades em fonte de inovação, criatividade e crescimento pessoal. Que possamos construir uma sociedade onde esses indivíduos não precisem mais se esconder atrás de máscaras ou sofrer em silêncio, mas sejam reconhecidos em sua dual excepcionalidade e recebam oportunidades para florescer. Cada cérebro, com suas sinapses peculiares, tem valor – e na intersecção da genialidade com a neurodivergência, podemos encontrar novas formas de enxergar o mundo e solucionarmos problemas de maneiras que nunca imaginaríamos. Valorizar e incluir plenamente as pessoas 2e é, portanto, não apenas uma questão de justiça individual, mas um investimento coletivo em diversidade de pensamento e talentos para o futuro.
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